Um lindo e admirável texto do doce e sensível Pr. Ricardo Gondim.
Lições tardias para um coração ávido
Categoria: Meditações - 10/12/2013
O tempo tudo destrói. A poeira da história, tangida pelo fluir inevitável do tempo, cobre tudo. Na mitologia, Kronos, um titã, devorava os filhos. Depois de séculos, impérios outrora avassaladores, enchem os atuais alunos secundaristas de tédio. Napoleão virou nome de cachorro. Exércitos desapareceram. Templos magníficos hoje não passam de escombros. Livros importantes jazem nas bibliotecas. Nós também passaremos.
Vergílio Ferreira, escritor português, percebeu que tratados escritos sobre infância, juventude e idade adulta se fala de ir. Vai-se aonde? - pergunta. Ao futuro- responde. Que futuro nos aguarda? Vergílio Ferreira conclui: esse tal “ir” é rumar para a velhice. E quando lá chegarmos, velhice é estar. De fato, velhice é o estágio em que gastamos o resto da nossa vida. Existencialmente, não sobram muitas opções: ou se morre cedo, como Camelot, ou se enfrenta a decrepitude. Desejos, sonhos e ambições nos impulsionam a caminhar. Rumamos, todavia, a um porvir que nos desfará em nada.
Embora não seja oficialmente idoso – ainda faltam alguns anos -, começo a me preparar para os derradeiros dias. Não pretendo viver a próxima etapa da existência, comendo o sobejo dos bons tempos já vividos. Reafirmo uma antiga crença: ninguém é velho enquanto estiver disposto a aprender. Na madureza, almejo continuar flexível. Quero sugar todo o conhecimento que puder. Sem nunca parar de repetir: Só sei que nada sei.
Treino despojar-me de falsas onipotências. Já confiei demais na própria capacidade de ordenar a vida. Imaginei certas convicções e práticas – principalmente as religiosas – capazes de me resguardar contra decepções, tristezas e contrapés. Contudo, como bem poetizou Chico Buarque, veio a Roda Viva e carregou o destino pra lá. Muitos dos meus pesares foram vãos, desnecessários. Tolo, superestimei a capacidade de aliviar o risco de viver. Arranhei a alma porque acreditei na possibilidade de blindar o corpo.
Abracei a mensagem religiosa que promete engrenar o cotidiano, garantindo vitória sobre vitória. Me esforcei ao máximo. Caso obedecesse regras, leis, preceitos, eu me livraria das dores que afligem tantas pessoas. Eu buscava a pureza espiritual que me abençoaria com um dia-a-dia protegido. Se fosse santo, viveria em estado nirvânico – na mais pura felicidade.
Depois de vários tombos, inúmeras bobagens, enormes desapontamentos e grandes decepções, acordei: a vida não se deixa encabrestar. Notei que nunca consegui alcançar a tal perfeição. Nessa busca, eu só me atolei na culpa – oprimido por um Superego cada vez mais gigante. Precisei criar espelhos distorcidos. A imagem que enxergava devia ser maior do que eu mesmo. Se a juventude engana e a meia-idade consegue ser um pouco mais coerente, a velhice se torna brutalmente honesta – ela nos esvazia dos delírios narcísicos.
Devido a minha sede de onipotência, idealizei auditórios. Acreditei na força da minha oratória. Eu me achava capaz não só de convencer como de arrebatar as multidões. Nas longas horas em que preparei sermões, pedi uma unção que me transformaria na extensão concreta e absoluta do próprio Deus. Eu não admitia ineficiência. Ambicionava converter indivíduos, transformar realidades e revolucionar o mundo. Confundi talento natural com eleição. Acabei inebriado com o meu discurso. Quando os meus cabelos começaram a pratear, dei-me conta: vários meninos e meninas da minha comunidade haviam desistido da fé; eu tinha sido chutado e espezinhado por colegas de ministério. Sofri. Toda a minha eloquência se mostrou, inapelavelmente, frágil.
Por me sentir um Atlas – com a responsabilidade de carregar o mundo nas costas – , raramente me permiti viver. Evitei alegrias e desperdicei momentos bonitos porque não os considerava úteis para o avanço da missão. Eu admitia o lazer caso servisse para me recompor, manter o vigor e me devolver ao trabalho. Poesia, nem pensar. Para minha vergonha, repeti inúmeras vezes que poesia não ajuda a argumentar. Contentáva-me em encaixar algum passeio na viagem missionária – com remorso. Celebrava o convite para falar em uma conferência, pela excelente ocasião de tirar uns poucos dias de férias. O correr dos anos minou esse ativismo messiânico. Agora aprendo a cantar com Almir Sater: Ando devagar porque já tive pressa/ E levo esse sorriso/porque já chorei demais/ Hoje me sinto mais forte,/ mais feliz quem sabe/ Eu só levo a certeza de que/ muito pouco eu sei, eu nada sei.
Minhas despedidas foram trágicas, os lutos, inconsoláveis e as decepções, amargas. Capitulei. Aceitei que a vida é frágil. Reconheci: não sou auto-suficiente. Ao confirmar a minha debilidade, reaprendi a ser grato. Gratidão nasce de uma memória modesta.
Pretendo seguir o restante da jornada com menos pretensão. Sem outros arroubos, quero conviver com as minhas frágeis intuições. Espero saber me gloriar nas fraquezas, nunca nos desempenhos. Anseio desvendar a beleza da confissão de Paulo: Porque, quando sou fraco, então é que sou forte (2Co 12.10).
Já dou de ombros ao imperativo religioso de superar a minha humanidade. Começo a reconhecer limites. Não sou anjo. Não me considero um conquistador das utopias – eu as guardo apenas como alavancas para novas iniciativas.
O tempo tudo desgasta. Paradoxalmente, o tempo avivou em mim a afirmação milenar do profeta: Ele te declarou, ó homem, o que é bom, e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus – [Miqueias 6.8].
Soli Deo Gloria
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